quinta-feira, 14 de novembro de 2019

D&D Quinta Edição: A polêmica da tradução

  Recentemente pude colocar as mãos na mais nova edição do jogo de RPG mais famoso do mundo, o Dungeons & Dragons (ou D&D). A Quinta Edição foi traduzida e lançada em outubro pela Galápagos Jogos. Nós vamos falar dele em uma postagem específica para resenha, mas hoje gostaria de abranger um assunto mais específico dentro do tema: a tradução.

  De 2017 pra cá, a Wizards of the Coast (WotC), a "dona" do D&D (e outros jogos conhecidos, entre eles o Magic), regulamentou o uso dos termos e palavras (inclusive grafia) para serem utilizados na tradução de seus produtos. Isso significa que todos os lugares do mundo precisam seguir certas regras para traduzir ou transliterar qualquer parte do jogo. E já dizia aquela piada machista: "Traduções são como mulheres: as boas não são fiéis e as fiéis não são boas". Comicidade ruim à parte, tradução é uma coisa que - mesmo no próprio D&D - já deixou muito nerd com orelha de elfo em pé. Que role um d20 aquele que nunca torceu o nariz para um termo ou outro no livro do seu jogo preferido.



Logo do D&D Next, franquia que abrange todo conteúdo de D&D Quinta Edição

Em relação à tradução (e ao jogo em si), parte do conteúdo foi exibido e explicado no Diversão Offline de 2019. Quem deu alguns detalhes foi Persio Sposito, gestor do projeto de localização do Dungeons & Dragons 5ª Edição da Galápagos Jogos. Eu explico direitinho aqui, mas você pode conferir a entrevista dele sobre o assunto aqui, aqui e aqui. Ele é o responsável pela equipe - ou melhor dizendo, equipes - que conta com núcleos específicos para fazer os trabalhos de localização e tradução (incluindo "aculturamento" de termos e expressões), revisão e Consistência Internacional e é claro, a Gestão de todas essas áreas interligadas. 

Segundo  Sposito, "uma das diretrizes desta edição de D&D é justamente o alcance global da marca e a acessibilidade a todos, não importando o seu 'nível de experiência' com o jogo.". Ou seja, não basta seguir as diretrizes impostas pela WotC. Precisa ser aderente a um padrão mundial, tanto de texto como em qualidade, permitindo que alguém que nunca tocou num livro de RPG consiga fazer da Quinta Edição seu primeiro jogo sem ter nenhum problema de entendimento.

  E quais são os padrões definidos pela WotC que tanto estamos citando? O Primeiro deles é o conjunto de Diretrizes de Marca, emitido pela empresa exclusivamente para o D&D. Há também o Guia para Versões Internacionais e o Guia de Estilos. São esses que dizem o que pode ser traduzido, o que vai ser transliterado e como isso deve ocorrer. Todas as páginas dos documentos oficiais possibilitam a mesma experiência de acesso aos produtos do D&D, quer sejam lidos em Português ou em Coreano.

Oque muda?


  Algumas das regras que esse calhamaço de documentação dita é que o título dos manuais básicos deve permanecer no idioma original. Um subtítulo respeitando a localização deve ser inserido logo abaixo. Ou seja, logo de cara a capa do jogo recebe um tratamento diferenciado do que era anteriormente. O Starter Set (Kit Introdutório) e o DM Screen (Escudo do Mestre) são opcionais nesse quesito, mas a editora já decidiu que manterá a mesma regra anterior, uma vez que as outras editoras ao redor do mundo estão fazendo o mesmo. Já os suplementos seguintes, podem receber um tratamento devido a localização sem problemas (o que acontecerá com a aventura A Maldição de Strahd e o livro Guia do Aventureiro para Costa da Espada).

As versões francesa e japonesa do Livro do Jogador
  Inicialmente isso não parece tão estranho, mas as modificações listadas a seguir podem causar rugas no rosto do nerd mais conservador. As raças, classes, equipamentos e magias seguem uma diretriz obrigatória que exigem a tradução e a adaptação do termo à localização. Isso significa que existem Pequeninos ao invés de Halflings, Guardiões ao invés de Rangers (bem melhor que o termo "patrulheiro"), Tiferinos ao invés de Tieflings.  Algumas palavras e termos foram pensadas pela equipe de localização e aculturamento, tentando remeter à ideia original do termo, a origem semântica da palavra e por que não, a bagagem histórica do cenário. Tudo isso sem ferir nenhuma diretriz de estilo. Afinal, Pequeninos é uma boa palavra pra definir "halfling". Ferino indica bestial, feral em Português. Acrescido do "Ti" inicial, o termo Tiferino soa muito próximo da pronuncia do termo original.

  As habilidades básicas (Força, Destreza, Constituição, Sabedoria, Inteligência e Carisma) continuam lá, mas agora se chamam Atributos (muito melhor na minha opinião). Logo Ability Check vira Teste de Atributo. Attack Roll é Jogada de Ataque e Saving Throw deixa de ser Teste de Resistência (ou Jogada de Proteção) para se tornar Salvaguarda. Feats continuam sendo chamados de Talentos. Já que o termo precisa ser traduzido, manteve-se a bagagem histórica. As Skills continuam sendo Perícias e não habilidades (por que já temos as habilidades de classe, então é bom não confundir). E por falar em confundir, talvez uma antiga criatura do livro de monstros, a Bruxa, seja chamada de Megera (argh!). Isso por que bruxa é o feminino da classe Bruxo (o warlock). E diga adeus ao clássico Beholder. Ele agora se chama Observador.

Apresentação exibida na Diversão Offline sobre as razões do termo traduzido


Explicação do termo Salvaguarda, exibida na mesma apresentação

  Nomes de cenários não serão traduzidos. Eles são considerados marcas derivadas da marca principal. No entanto, nomes de lugares, cidades e personagens serão traduzidos se houver uma equivalência utilizável. Já no começo do livro é possível não só ler Forgotten Realms, mas como também Águas Profundas (a cidade Waterdeep, já traduzida anteriormente pela Devir como Profundágua). Material que já havia sido lançado antes da documentação oficial não será alterado, exceto em casos de relançamento. A Galápagos Jogos também não pode responder pelos materiais que não possui licença, como os romances de D&D, publicados pela Jambô Editora. Esse material, inclusive, possui uma documentação diferente dos jogos e suplementos de mesa. O mesmo vale para os boardgames (como é o caso de Tiranos da Umbreterna, lançado pela Kronos Games).

E como ficamos?


Você é tão antigo que pertence à uma edição anterior!
  A mudança causa um estranhamento que é natural, ainda mais quando existiram traduções e adaptações anteriores. Ainda hoje tem gente que reclama da tradução de Hit Points (Pontos de Acerto) para Pontos de Vida, dizendo que a pontuação reflete o quanto você pode ser acertado e não o quanto pode ser ferido... Pra mim, como jogador e consumidor do produto, fico mais tranquilo em relação à transparência da empresa em nos mostrar o que precisou ser feito e como isso foi conduzido. De fato, é mais fácil entender e questionar o uso de um termo específico do que questionar o por que dele ter sido traduzido.

  Conheci o D&D quando ele ainda se chamava AD&D (com o tal Advanced no nome). Naquela época de traduções da Editora Abril, onde os nomes raramente eram traduzidos, eu e meus amigos improvisávamos regras com meia duzia de tabelas vindas do xerox do livro de alguém. Não nos importávamos se os termos que foram traduzidos estavam corretos. E quando numa das ocasiões mais raras tínhamos acesso a um importado, o termo traduzido era inventado na hora pelos membros da mesa. De fato, entender a mensagem diz mais do que a forma com que a mensagem foi escrita. 

  Vai ser difícil se acostumar com os novos termos e aqueles que protestam muitas vezes esquecem a regra maior de qualquer jogo de RPG - você determina quais regras valem na sua mesa para que se divirtam. E sim, o mesmo deve valer pra traduções, afinal. Confesso que na minha mesa os halflings jamais serão "pequeninos", da mesma forma que já me diverti igualmente empunhando tanto uma Holy Avenger quanto uma Vingadora Sagrada. O termo não mudam o rolar dos dados - então por que deveriam mudar a forma com que você se diverte?

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