quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Conto: Em terra de cego...

 
Acordou com o calor morno do sol beijando-lhe o rosto. O chão onde dormira continuava gelado, entretanto. Sentou-se devagar, lembrando de se espreguiçar calmamente, como um gato mudando de posição numa almofada. O sons das gaivotas ainda eram baixos, sinal que estavam acomodadas em seus ninhos nos rochedos. Ouvia as ondas quebrando de forma suave no cais, indicando calmaria. O beco onde acordara permanecia em silêncio, mas a casa ao lado começava a despertar, a julgar pelo escarrar do vizinho. Resolveu se levantar antes que lhe jogassem um balde de merda pela cabeça.
  Não possuía nenhum pertence além da roupa do corpo e da bengala tosca de madeira que estava em pé na parede, a dois passos da esteira onde dormira. Esticou o braço com precisão e a agarrou. Em dias ruins, quando sua saúde de morador de rua cobrava seu preço, não teria conseguido pegá-la e possivelmente estaria de gatinhas no chão a procurar pelo espeto caído.

  Caminhou os mesmos vinte passos que contara na noite anterior até a Rua da Cantina. O cheiro de pão fresco encheu-lhe as narinas, mas logo o fedor o substituiu. Ouviu o derramar barulhento do balde de excrementos arremessado pela janela. "Bem na hora", pensou. Naquela noite, teria que dormir em outro lugar. Preferiu seguir o cheiro de pão fresco. A bengala foi à frente, batendo na parede da primeira casa. O toc-toc indicava parede de pedra, mas o tac-tac mostrava uma porta de madeira. Ouviu um cumprimento de bom dia e sabia que era a senhora Darlings por causa da voz fraca e debilitada e do cheiro de roupa velha. O toc-toc e o tac-tac o seguiram por mais algumas dezenas de metros. Os passinhos miúdos das crianças que já se punham a brincar enchiam as vielas e as vozes dos mais velhos podiam ser ouvidas arrumando a lenha no fogão.
 
  Então os passos se afastaram quando o som de madeira rolando pelo chão de terra batida tornou-se mais alto. Barulho de cascos batendo em compasso devagar. Seguiu o movimento dos outros pedestres, ficando próximo à parede. A carroça chacoalhava e seu conteúdo deslizava lentamente pela caçamba, com trinados vítreos como um passarinho. O carroceiro parou logo a frente e o assento rangeu, aliviado pela saída da carga. O homem era grande ou gordo. Ele conversou frivolidades por alguns segundos com uma criança, enquanto as garrafas faziam seu brinde umas às outras no engradado. Sua voz era rouca e cansada, indicando mais idade. Moedas tilintaram de uma mão para a outra e a criança correu em passos curtinhos com a garrafa balançando seu líquido num choc-choc incessante. Naquele momento, ele decidiu que leite acompanharia muito bem seu pão fresco.
  A carroça reclamou novamente quando o homem subiu, rangendo o assento. Os cascos do cavalo voltaram a bater no chão e a carroça seguiu pela rua numa marcha lenta. Ele ousou seguir a carroça, a bengala a frente riscando o chão indicando-lhe os sulcos que o veículo deixava. Se sua contagem de passos estava certa, logo chegariam à esquina e ela diminuiria a velocidade para virar. Tempo perfeito.
  Mas sua contagem de passos estava errada ou a carroça parou antes, por que ele se chocou com a traseira da carroça. A bengala, dessa vez, passara por baixo das armações de madeira. Ouviu o assento ranger e o homem perguntar:
  - Está tudo bem aí, meu senhor?
  Enfiou a mão dentro da caçamba e achou o engradado. Era de madeira, mas estava gelado pelo suor das garrafas, possivelmente refrigeradas em tonéis de água com gelo. Agarrou uma pelo gargalo, sentiu seu peso e a retirou sem impedimentos. Ouviu o homem dizendo que custavam dois cobres, mas pouco importou. Ele simplesmente correu com ela. O leiteiro demorou alguns instantes antes de gritar "Ladrão!".
  A bengala riscava o chão como um giz riscaria um quadro negro, vibrando quando cruzava os sulcos de suas próprias pegadas. Alcançou a parede da casa próxima e seguiu os toc-tocs e os tac-tacs, uma casa de cada vez. Importava-se também com os barulhos atrás de si: grandes passadas, pisadas fundas e cada vez mais afastadas. O homem era gordo e estava destreinado, mas tinha a vantagem de ver onde seu objetivo ia.
  A bengala então encontrou um espaço vazio e dançou como se estivesse viva. O cheiro de excremento veio ao nariz e ele entrou novamente no beco, o mais rápido possível. Tentou evitar a poça de sujeira, correndo em direção à outra parede. Caminhou demais, o ombro chocou-se com o muro e ele perdeu o equilíbrio por um instante. Manteve a garrafa fria sob seus dedos. Os passos atrás de si continuavam. A bengala tocou o chão e a parede e ele tornou a andar até ela lhe dissesse que havia algo à frente.
  Com as duas mãos ocupadas, usou a bengala para definir o que estava à sua frente. Parecia quadrado, cheirava a madeira molhada e firme o suficiente para servir de apoio. Colocou a garrafa em cima, apoiou-se na tampa úmida e subiu em cima do caixote. A bengala dizia que ele havia subido quase um metro e que havia outro caixote à sua frente e talvez outro, como degraus de uma escada. Viu-se de cócoras sobre o caixote, a mão tateando em busca da garrafa. Quando a encontrou, agarrou com força e se preparou para subir o outro caixote.
  Ouviu um silvo já conhecido, mas não conseguiu definir a origem do mesmo até que o estalo do chicote atingiu seu braço. O choque e a dor o fizeram puxar o braço e a soltar a garrafa enquanto se encolhia em um canto. Ouviu um sonoro plaf, espalhando vidro e leite pelo beco. Segundos depois o cheiro era de uma vaca ordenhada em uma latrina.
  - Seu... ladrão filho de... uma puta! - A voz parecia mais cansada e entrecorta. Perda de fôlego. O homem estava realmente fora de forma. Outra vez o silvo, mas desta vez ele calculara de onde vinha e mudou de lado na caixa. O estalo atingiu a parede e despregou argamassa espirrando pó por todo lado. Não ficaria parado para ouvir o estalo novamente. Subiu mais uma vez e suas mãos tocaram pedra fria e argamassa. Calculou que o muro teria então dois metros de altura deste lado, considerando que o primeiro caixote era pouco abaixo da sua cintura.
  Tomou muita coragem e pouco fôlego e saltou por cima do muro, que pra sua sorte, tinha o mesmo tamanho do outro lado. Caiu de lado, o braço embaixo do corpo a tirar-lhe o pouco ar que restava dos pulmões. A perna doía, e ele estava totalmente desorientado. Sentou-se, procurou a bengala e reservou alguns segundos para se recuperar. O homem do outro lado do muro ficou a gritar-lhe palavrões, mas a voz foi se afastando até sumir dos seus ouvidos. Levantou devagar. O dia já não lhe fora bem, mas isso não significava que podia melhorar. Com um sorriso, agarrou a bengala e aprumou o nariz. De onde mesmo que vinha aquele cheiro gostoso de pão?

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